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De questionamentos a apagões: o governo e os dados da covid

Ao longo da pandemia, mudanças de regras realizadas pelo Ministério da Saúde foram obstáculos para contagem de casos de Covid no Brasil, enquanto Bolsonaro e seus apoiadores reproduzem narrativa falsa de exagero nos números. Para especialistas, cenário é de subnotificação. 

Quando o país atingiu a marca de 300 mil mortos por covid-19 na quarta-feira (24), o Ministério da Saúde alterou as regras para registro de pacientes em seu banco de dados. O procedimento ficou mais complicado, o que atrasou os registros, levando à diminuição artificial do número de óbitos em algumas unidades federativas. Pressionado por secretários da área que atuam em estados e municípios, o governo federal voltou atrás.

A contabilização de mortos e casos da doença do novo coronavírus é objeto de disputa desde o começo da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores apostaram na ideia de que há uma notificação exagerada de casos de covid-19 no Brasil, numa narrativa que procura minimizar o impacto da doença. Do outro lado, especialistas apontam o problema da subnotificação em um país que testou e monitorou muito pouco a doença.

Como foi o vaivém de março de 2021

Na mais recente tentativa de mudança, o Ministério da Saúde passou a exigir dados adicionais para cadastramento de pacientes no Sivep-Gripe (Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe), como número do CPF, do cartão do SUS (Sistema Único de Saúde) e nacionalidade, informações que muitas vezes não estão facilmente disponíveis aos agentes de saúde locais. O Sivep-Gripe reúne dados de mortes por Srag (síndrome respiratória aguda grave), o que inclui infectados por covid-19.

Para o secretário de Saúde do estado de São Paulo, Jean Gorinchteyn, “burocratizar sem avisar fez com que não tivéssemos aportado por grande parte dos municípios do país o número de óbitos”. O número de óbitos no estado de São Paulo, por exemplo, despencou de 1.021 na terça-feira (23) para 281 no dia seguinte por conta da alteração no procedimento.

Um problema de instabilidade também prejudicou o registro correto de óbitos no Mato Grosso do Sul. Nesse caso, teria havido uma oscilação no sistema do Sivep, fazendo com que fossem computadas apenas 20 mortes por covid-19 na terça-feira (23) no estado, de acordo com a Secretaria de Saúde local. “Vamos apontar hoje 20 óbitos, o que não é realidade. Nós estamos tendo muito mais óbitos que esses anunciados hoje”, afirmou ao site G1 o secretário Geraldo Resende.

Após reclamações do Conass (Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde) e do Conasems (Conselhos Nacional de Secretários Municipais) de não terem sido comunicadas “em tempo oportuno” da novidade, o Ministério da Saúde voltou atrás.

Pela lei brasileira, toda pessoa hospitalizada com Srag deve ter seus dados inseridos no Sivep-Gripe. Com a mudança promovida pelo ministério, o fornecimento do CPF, antes considerado apenas “essencial”, passou a ser obrigatório. No caso do número do documento não estar disponível, deveria obrigatoriamente informar o número do Cartão Nacional do SUS. Os autodeclarados indígenas não precisam fornecer essas informações.

“Qualquer informação no sistema informatizado que venha a agilizar o processo é bem-vinda, mas essa tornaria os dados mais lentos. A alimentação do sistema seria mais complexa e mais suscetível a erros. Esse impacto felizmente não será observado”, disse ao Nexo Paulo Petry, mestre e doutor em epidemiologia e professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

O questionamento sem base dos bolsonaristas

O Brasil é segundo país com maior número de mortes totais do mundo pela covid-19, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. No ranking proporcional, de mortos a cada 100 mil habitantes, o Brasil está na 13ª colocação, considerando apenas países com população acima de cinco milhões). A narrativa de que há exagero nas contagens persiste no universo bolsonarista, muitas vezes por incentivo do próprio presidente da República.

“Parece que só [se] morre de covid [no Brasil]”, afirmou Bolsonaro em 18 de março de 2021. A declaração se junta a uma longa lista de falas em que o mandatário coloca em dúvida o número de internados ou mortos pela doença.

Logo após o comentário presidencial, segundo o jornal O Globo, o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, teria dito em conversas de bastidores que pretendia fazer aparições em hospitais para checar se realmente as UTIs estavam lotadas e se era com pacientes de covid-19.

De acordo com o portal UOL, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) afirmou, na terça-feira (23), que o Ministério da Saúde iria realizar diligências em hospitais com o apoio da Polícia Federal.

Durante a pandemia, um eixo recorrente de notícias falsas propagado pelas redes bolsonaristas era de que haveria uma “supernotificação” de casos e óbitos de covid-19. Em agosto de 2020, um post nas redes sociais trazia a informação falsa de que governadores tinham determinado que a covid-19 deveria constar como causa mortis de todos os atestados de óbito de pacientes que morreram em unidades do SUS.

Levantamento do canal CNN Brasil com dados das secretarias de saúde, divulgado em 22 de março, indicava que 16 estados brasileiros estavam com o sistema de saúde colapsado, com ocupação em UTIs acima de 90%. No caso de Mato Grosso do Sul, a taxa era de 106%.

Os apagões de dados registrados em 2020

Os dados sobre covid-19 compilados pelo Ministério da Saúde sofreram dois apagões em 2020. Na primeira vez, em junho daquele ano, o portal da pasta retirou números consolidados de mortos e infectados por covid-19, mantendo apenas as informações das últimas 24 horas.

Na ocasião, o site ficou fora do ar por mais de 12 horas. Quando retornou, não estavam mais disponíveis os números consolidados de mortos e casos de covid-19. Tabelas, gráficos e a opção de download dos dados, recurso importante para análise estatística, foram removidas. Na época, Bolsonaro afirmou que “o Ministério da Saúde adequou a divulgação dos dados sobre casos e mortes relacionados à covid-19”.

Com a confiabilidade dos dados oficiais sob suspeita, os veículos de comunicação G1, O Globo, Extra, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e UOL passaram a contabilizar os dados de forma independente, a partir de números obtidos junto às secretarias estaduais de Saúde. Até hoje, o Brasil conta diariamente com duas totalizações: do Ministério da Saúde e do consórcio de veículos de imprensa.

Três dias depois do apagão, em 9 de junho, o site do ministério voltou a exibir os dados consolidados e regularizou as ferramentas que haviam sido retiradas. Na época, o Brasil tinha ultrapassado os 35 mil mortos por covid-19.

Em novembro, às vésperas do segundo turno das eleições municipais, surgiram novas denúncias de apagão de informações na plataforma do ministério. Entre os dias 6 e 12 de novembro, estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Distrito Federal reportaram dificuldades para atualizar seus números de óbitos no sistema. A pasta disse que seus sistemas foram atacados por hackers. A situação se normalizou em 14 de novembro.

A confiabilidade dos dados oficiais

Os dados divulgados pelo ministério, assim como os dados do consórcio de imprensa, vêm da mesma fonte: as secretarias estaduais de Saúde das 27 unidades federativas do país. Eles costumam apresentar uma ligeira diferença numérica, mas que nunca chega a ser estatisticamente significativa.

Em agosto de 2020, o site Poder360 comparou os balanços publicados pelos dois em pouco mais de um mês de dupla contagem. A diferença nos números totais de infectados e mortos ficou abaixo de 1%.

Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que, em geral, as informações divulgadas pelo Mnistério da Saúde e pelas secretarias são confiáveis. “O sistema é informatizado e as prefeituras e o pessoal da ponta vai alimentando o sistema e isso é centralizado pelo ministério”, afirmou Paulo Petry, da UFRGS.

Para Márcio Sommer Bittencourt, médico do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da USP (Universidade de São Paulo), a confiabilidade não é o problema, mas sim o subdiagnóstico da doença, decorrente da falta de testagem e por subamostragem. “O dado em si não tem grande problema, o que existe mesmo é uma subnotificação substancial”, disse.

De acordo com o especialista, essa subnotificação fica entre 30% e 40% para internações e é um pouco menor para óbitos. Para casos da covid-19, ele aponta que o número real deve ser de duas a quatro vezes maior do que o apontado pelas estatísticas.

“A subnotificação acontece especialmente em função dos novos casos por que testamos pouco”, corroborou Petry. “Ela é um pouco menor quando se fala em óbitos, pois o número de mortos escapa menos dos sistema. Convém ressaltar que é super importante notificar adequadamente porque isso permite dimensionar e executar ações de prevenção ou tratamento.”

Fonte: Nexo – Camilo Rocha
Publicado em 29/03/2021
Foto: Ueslei Marcelino/REUTERS

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