07
dez

15ª CNS: uma agenda para os próximos anos em defesa do SUS, da democracia e do direito à saúde

Em artigo, a presidenta do Conselho Nacional de Saúde e coordenadora-geral da 15ª Conferência Nacional de Saúde, Socorro de Souza, avalia que a 15ª recuperou e ampliou o caráter político e popular das conferências de saúde. Resgatou, assim, o espírito dá 8ª CNS, de 1986, responsável pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Veja a íntegra do Artigo "O caráter político, popular e propositivo da 15ª Conferência Nacional de Saúde: uma agenda para os próximos anos em defesa do SUS, da democracia e do direito à saúde".  

Na época, em plena efervescência da Assembleia Nacional Constituinte, a disputa era por um conceito amplo de saúde como bem-estar social, para além da ausência de doença, um esforço pela construção coletiva de um projeto de desenvolvimento nacional.

Agora, a 15ª se posicionou frente à ameaça de golpe ao Estado Democrático e de Direito, além de defender, atualizar e resignificar o conceito de direito universal à saúde. E foi além, ao discutir, também, condições necessárias para dar materialidade a este direito mediante a formulação e execução de políticas públicas.

A Brasília, vieram cerca de 4,6 mil participantes para etapa nacional da 15ª, representantes de gestores, prestadores de serviço, trabalhadores da saúde e usuários que, dia após dia, se dedicam a fazer acontecer o SUS. Movimentos sociais que representam a diversidade organizativa do povo brasileiro, entre os quais se destacam as representações sindicais, feministas, estudantis, indígenas, de negros, de cidadãos e cidadãs em situação de rua, de caráter comunitário, popular de saúde, de aposentados e idosos, de patologias e deficiências.

Vieram, ainda, convidados de 12 países da América Latina e Caribe, presentes no I Encontro Latinoamericano de Movimentos e Entidades pelo Direito Universal à Saúde, evento também realizado em Brasília. E com o mesmo sentido político: debater o poder popular e a democracia como condição importante para uma luta intercontinental em defesa de sistemas universais de saúde, e resistência política pela permanência e governabilidade de governos democráticos e de esquerda na América Latina.

Durante dois dias, dividida em grupos de trabalho, a conferência debateu 625 proposições gerais. Destas, 80% foram aprovadas com mais de 70% dos votos, 13% foram rejeitadas e 7% foram para a plenária final.

O eixo “Direito Universal à Saúde” defendeu a saúde como necessidade e direito humano, como justiça social, expressa em uma proposta da Bahia e aprovada por todos. Está registrado:

“Garantir o acesso integral, humanizado e de qualidade em todos os níveis da rede de atenção à saúde no SUS para a população indígena, negra, LGBT, das águas, dos campos, dos terreiros, em privação de liberdade, em situação de rua, idosos, usuários sem documentos, pessoas com deficiência e em situações de vulnerabilidade”.

Buscamos, dessa forma, uma concepção de bem viver. Uma maneira de alicerçar a identidade de cada num contexto de modernidade contemporânea. Trazer novos desafios às relações sociais e aos modos de vida em sociedade a partir de bandeiras libertárias capazes de dar novos sentidos aos direitos humanos. Um modo de se posicionar contra as desigualdades, a exclusão e a dominação. E contra todas as formas de discriminação e preconceito, sobretudo contra a violência baseada em classe social, gênero, geração, raça, etnia, orientação sexual, crenças e costumes.

Buscamos propostas para viver bem na cidade e no campo, carregadas de forte apelo social, político e ambiental, que exigem uma abordagem intersetorial, como enfrentar a violência no trânsito; contra mulheres, idosos, juventude negra, contra pobres. Realizar a reforma urbana e a reforma agrária; banir o uso abusivo dos agrotóxicos na agricultura brasileira; punir responsáveis pelos desastres e crimes ambientais merecem destaques. Assim como atentar para novas ameaças à saúde, como o Zika vírus.

A 15ª também se debruçou sobre a questão fundamental da comunicação em um mundo integrado por redes digitais. Nela, tiramos propostas para o uso da internet e de rádios comunitárias de forma a fortalecer e inovar a participação e a comunicação social no SUS. A intenção é contribuir para ampliar o diálogo com os usuários, garantir a transparência, mobilizar a sociedade acerca do direito à saúde e da defesa do SUS, responsabilizando os cidadãos pelo exercício da cidadania.

O orçamento participativo foi reafirmado como forma de combater a corrupção e a má gestão pública. Assim como as ouvidorias como forma de avaliar a satisfação do usuário em toda a rede do SUS. A assertiva de que a autonomia dos conselhos de saúde deve ser preservada levou à rejeição da obrigatoriedade de o gestor da saúde ser presidente de conselho. Ou seja: haverá eleição direta para todos os conselhos.

Isso é discussão de saúde, mas também é um importante debate sobre democracia.

A 15ª foi fundamental para se discutir o papel do Estado na regulação do trabalho em saúde, os espaços de negociação permanente entre trabalhadores e gestores da saúde, e os mecanismos de precarização, valorização e qualificação do trabalho na saúde por meio da criação e implementação do Plano de Carreira, Cargos e Salários. Tudo dentro das proposições levantadas pelo eixo “Valorização do Trabalho e da Educação em Saúde”.

Dessa forma, motivamos estudantes da área da saúde a acreditar no sonho de fazer carreira no SUS, assim como repudiamos o tratamento indigno dedicado a trabalhadores da saúde, a baixa regulação do setor privado e o avanço da terceirização.

Levantamos e aprovamos propostas para superar o acumulado e histórico subfinanciamento, bem como a insuficiência de recursos, circunstância com enorme potencial para ameaçar o padrão de saúde até então prestado pelo SUS à população. Continuamos, assim, a nossa luta pela aprovação da PEC 01/2015, que dispõe sobre maiores investimentos em saúde por parte da União, assegurando financiamento estável e a definição de novas fontes de financiamento, tendo como prioridade a atenção primária e a rede pública estatal. Também votamos pelo veto de repasse de recursos públicos para instituições paraestatais, como Organização Social da Saúde (OSS) e Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPS).

Em outra frente de luta, a 15ª reforçou a necessidade de o governo taxar as grandes fortunas e as grandes movimentações financeiras, uma maneira de tirar mais de quem tem mais para financiar um sistema de saúde que é de todos e de todas.

Há uma consciência política crítica que reivindica reformas democráticas do Estado, como as políticas, tributária e fiscal, assim como a democratização dos meios de comunicação, como condição de defesa dos direitos sociais e do SUS. Trata-se de uma contraposição necessária à agenda política conservadora, de orientação econômica neoliberal e socialmente retrógrada em andamento no Congresso Nacional.

Por isso, foram denunciadas e rejeitadas agendas legislativas que ameaçam os direitos da classe trabalhadora e dos povos indígenas, inclusive no que se refere à sua permanência em terras originárias. Também fomos um campo de luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, pela desregulamentação do Estatuto do Desarmamento e pelo controle social da ética em pesquisas clínicas com seres humanos.

Repudiamos, sim, a tentativa legislativa de usurpar do povo brasileiro o direito universal à saúde, como está previsto na PEC 451/2014, de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que propõe transformar um bem comum a todos brasileiros em bem de consumo para os trabalhadores que podem pagar. Uma proposta que tem por interesse ampliar o avanço do capital estrangeiro na assistência à saúde no Brasil.

Fizemos saber, publicamente, que esse avanço sobre o direito à saúde pode inviabilizar o acesso dos usuários aos serviços do SUS e dos Planos Coletivos de Saúde mediante a apropriação da infraestrutura já instalada. O caso mais recente é da operadora AMIL, que comprou o Hospital Samaritano (Bahia e, o Memorial São José e o Santa Joana (Recife). O passo seguinte é fazer a dolarização das tabelas de serviços, aniquilar os serviços suplementares ao SUS e aviltar os preços de planos de saúde.

A 15ª trouxe para a etapa nacional diferentes atores sociais e políticos de distintas realidades do País. Ousou fazer um novo jeito de mobilização social na saúde. Talvez tivesse sido mais fácil e tranquilo manter o jeito de sempre de se fazer conferência de saúde. Certamente teríamos enfrentado menos problemas organizativos e menos críticas dos insatisfeitos, que foram minoria.

A ousadia de correr esses riscos foi necessária e nos levou a um novo aprendizado. Ampliamos a base social da conferência, o diálogo com a sociedade, ocupamos espaços nas redes sociais e na mídia comercial e repercutimos a posição dos militantes da saúde frente a atual crise política.

Ao longo de três anos, foram milhares de plenárias populares, conferências livres, pré-conferências, tudo antecedendo e até mesmo superando etapas locais. Um novo jeito de escutar e de se comunicar com a sociedade. Um novo jeito de incluir na participação social da saúde segmentos social e politicamente excluídos, como os povos de terreiro de matriz africana, ciganos, camponeses, ribeirinhos, pescadores, população em situação de rua, rezadeiras, benzedeiras, novos profissionais da saúde. Além disso, o uso da inscrição pela internet garantiu cerca de 100 pessoas pelo livre-credenciamento.

A 15ª expressou diferentes vozes e diferentes desejos do povo brasileiro, ganhou força social e ocupou o asfalto da capital federal em defesa do SUS, contra a tentativa de golpe e em defesa de um mandato presidencial eleito pelo povo.

Jamais imaginamos que a democracia brasileira seria chantageada e ameaçada por uma oposição odiosa que divide e desestabiliza o País, e que criminaliza a presidenta da republica por ter tomado decisões de manter em dia pagamentos de compromissos sociais, como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e o Mais Médicos.

Foi isto que justificou a vinda da presidenta Dilma Rousseff à 15ª Conferência Nacional de Saúde. Porque ela foi eleita para defender e implementar políticas públicas a favor do povo brasileiro.

Esperamos que a ação política sirva para que as deliberações da 15ª também incidam sobre as decisões políticas de todos os governos, em todos os níveis. Sirva para resistir ao golpe, contra o impeachment.

Porque sem política não há democracia e nem SUS. E sem SUS não há democracia na saúde.

 

Por Socorro de Souza, presidenta do CNS

 

 

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