Linha de chegada pode ser para poucos
O mundo inteiro está em busca de algum medicamento, vacina ou tratamento para que possamos combater de vez a Covid-19. Mas é possível que, quando vier, essa descoberta não seja disponibilizada para a maioria dos 7,7 bilhões de pessoas da população mundo, se não enfrentarmos outra batalha, que é a da patente.
Há quase um mês, no dia 2 de abril, foi protocolado na Câmara Federal o Projeto de Lei 1462/2020, suprapartidário, que propõe licença compulsória nos casos decorrentes de declaração de emergência de saúde pública de importância nacional ou internacional. Ao longo desse tempo e, mais particularmente, nesta semana, entidades como Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Conselho Nacional de Saúde (CNS), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Grupo de Trabalho sobre a propriedade intelectual (GTPI), entre outras, se mobilizam para que o projeto entre em pauta o quanto antes.
O projeto propõe que toda e qualquer descoberta, seja de medicamentos, insumos ou outras ferramentas importantes para o combate à pandemia, tenha a licença compulsória – popularmente conhecida como “quebra de patente”. Isso significa uma suspensão temporária do direito de exclusividade do titular da patente, permitindo a produção, uso, venda ou importação do produto ou processo por um terceiro, desde que ele tenha sido colocado no mercado. Para que isso ocorra, é necessário um trâmite específico – declarar interesse público, abrir e esgotar negociações e emitir um decreto presidencial fazem parte desse processo. O projeto que tramita no parlamento brasileiro prevê, no entanto, que esse trâmite seja encurtado em casos de contextos pandêmicos como o atual. Para fazer valer, o texto propõe que, com a declaração de emergência de saúde pública de importância internacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ou declaração de emergência de saúde pública de importância nacional pelas autoridades nacionais competentes, o licenciamento passaria a valer até o fim do enfrentamento do estado de crise.
Logo após a apresentação do PL, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou, no dia 7 de abril, a moção de Apoio nº3, que alega que a “disponibilidade de medicamentos, equipamentos, tecnologias, insumos, dispositivos médicos pode sofrer restrições em função de monopólios legais, patentes e direitos de propriedade intelectual que geram monopólios (legais ou não) e que patentes podem limitar a importação, o desenvolvimento, a produção e fundamentalmente, o acesso a tais tecnologias, pois permitem a apenas uma empresa impor preços elevados e inacessíveis para milhões de pessoas”. O que o CNS denuncia em sua moção é que um laboratório que obtém a patente de um remédio pode cobrar o preço que quiser, determinando, pelas regras de mercado, onde ele quer ou não que este medicamento tenha um acesso mais ampliado, independentemente da necessidade. E, se isso acontecer com a Covid-19, não será a primeira vez que a falta de medicamentos pode mudar de vez o rumo da história. Casos como medicamentos para HIV e Hepatite C são simbólicos dessa situação.
O professor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) Jorge Bermudez lembra que esse episódio não é novo. “Em um caso mais recente, tivemos um medicamento sob detenção da Roche que ajudaria no combate à Influenza. O laboratório sub-licenciou o medicamento para algumas companhias e cobrou o preço que quis. O que pode acontecer hoje é que teremos avanço na descoberta de alguns produtos, mas ninguém terá a capacidade de produzir em semanas ou meses. E aquilo que é desenvolvido no hemisfério norte pode ficar por lá e, se chegar por aqui, será muito tempo depois”, avalia e acrescenta: “Mas, o mais grave é que qualquer produto novo pode ter patente e, em consequência, monopólio. E isso pode não se tornar acessível a todos os países. Por isso vários países já estão defendendo que, enquanto durar a pandemia, produtos relacionados ao enfrentamento da Covid-19 não tenham proteção patentária”.
Paulo Villardi, do Grupo de Trabalho sobre a propriedade intelectual (GTPI), ressalta que as pesquisas sobre a família do coronavírus foram tiradas de portfólios de diversos laboratórios que hoje estão nessa corrida pela descoberta da cura ou da prevenção. “Existe uma não priorização dessa pesquisa, que levou a esse quadro. O fato é que ocorre a priorização das doenças que mais atingem os países do norte global, como hipertensão, diabetes e câncer, que geram maior lucro”, afirma e detalha: “As empresas não investem muito em pesquisa e desenvolvimento. É mais em marketing. O que a gente tem hoje é a pesquisa de segundo uso [quando a substância é desenvolvida com um objetivo e é testada em outras soluções]. É o caso da hidroxicloroquina e do atazanavir. Todos esses medicamentos não foram desenvolvidos para a Covid-19. Eles têm outros usos farmacêuticos. Estão sob patentes e [os laboratórios] estão pedindo a [patente] de segundo uso, ampliando ainda mais o tempo de validade de suas restrições”.
Segundo o pesquisador do GTPI, o atual modelo de inovação em saúde é baseado no monopólio. As grandes empresas pesquisam moléculas e substâncias que podem ser eficazes e seguras para tratar doenças, mas buscando ser detentoras únicas sobre qualquer parte do processo de desenvolvimento e do produto final. “Isso faz com que não haja nenhum tipo de colaboração, nenhum tipo de troca entre pesquisadores da área, o que atrasa e muito o desenvolvimento de tecnologia em saúde”.
Para o advogado e especialista em saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Matheus Falcão, o projeto de lei é o caminho mais adequado para que o país tenha maior alcance aos medicamentos. “É uma preocupação porque o preço dos medicamentos pode não dar acessibilidade [da população ao remédio]. Por isso reivindicamos a aprovação do projeto de lei. A licença compulsória é de fato a medida mais adequada, pois promove maior sustentabilidade na oferta, queda de preços e equidade no acesso a nível local e global”, afirma.
Outras experiências
Há pouco mais de uma semana o laboratório Gilead anunciou que o antiviral remdesivir reduziu o tempo de internação por Covid-19, segundo resultados preliminares de um estudo. Simultaneamente à produção deste estudo, o laboratório solicitou patente da substância em 70 países, incluindo o Brasil. “Isso é a forma de assegurar que eles tenham o monopólio, caso esse produto seja comprovado como efetivo”, avalia Bermudez. O mesmo laboratório é responsável pelo grande embate da substância sofosbuvir, responsável pela cura da Hepatite C, que obtém licença voluntária, – aquela que é concedida pelo laboratório em alguns países com status de renda baixa -, mas que naqueles que não se encaixam essa exceção, como é o caso do Brasil, a mesma substância custa até dez vezes a mais. “O laboratório elegeu os países com quem quis sub-licenciar e aqueles que não estavam na lista ficaram de fora e pagam valores exorbitantes”, completa o pesquisador.
Para evitar que isso aconteça no caso da Covid-19, países como Israel, Alemanha, Colômbia, Canadá, Chile e Equador anteciparam suas iniciativas e já determinaram licença compulsória para descobertas relacionadas a esta pandemia.
Na busca do melhor tratamento para a Covid-19, a Organização Mundial da Saúde articulou o projeto ‘Solidariedade’, do qual participam 17 instituições brasileiras, coordenadas pela Fiocruz. Na plataforma, há 75 projetos em andamento, a maioria ainda na fase de testes em animais, sendo cinco em fases iniciais de testes em humanos. “Há uma articulação intensa em setores públicos para descoberta [do medicamento], por isso é importante que esse PL seja aprovado. Caso essa descoberta seja feita pelo setor público, seria todo um trabalho de pesquisa que depois teria um entrave para tornar essa substância acessível à população se ela for de algum farmacêutica detentora da patente”, avalia Matheus. A OMS tem a pauta de acesso a medicamentos como uma de suas metas, além de ser tema de um Painel de Alto Nível do Secretário-geral das Nações Unidas em Acesso a Medicamentos. Esta temática consta também na Agenda 2030 para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Por solicitação da Costa Rica, a Organização está também estudando a criação de um pool de patentes de tecnologia Covid-19, em que laboratórios pudessem suspender seus monopólios para uso público global.
Em 2006, o Brasil já utilizou o mecanismo de licença compulsória, para retirar o monopólio de preços decorrente do Efavirenz, utilizado na resposta ao HIV/Aids. Por meio dessa iniciativa, o país pode conceder acesso a um número maior pessoas infectadas pelo vírus. “Com a licença compulsória conseguiu-se importar [o medicamento] por um preço mais baixo da Índia e, em paralelo, trabalhou-se com a capacidade de produção no país, fazendo com que em dois anos essa substância passasse a ser produzida internamente, por Farmanguinhos, da Fiocruz, o que resultou numa economia de milhões aos cofres públicos e a preservação de muito mais vidas”.
Pedro Villardi relembra que, diferentemente do Brasil, que não reconhecia a patente, no final da década de 1990 e início dos anos 2000, a África do Sul não conseguiu atuar de maneira massiva no enfrentamento às consequências da falta de acesso ao medicamento. “O país viu uma geração ser dizimada porque as pessoas não conseguiam comprar individualmente nem tinha um programa nacional de distribuição que fosse possível frente aos preços utilizados pelas grandes farmacêuticas internacionais. A gente fala que existe um genocídio da indústria farmacêutica que soma dez milhões de mortes no início da epidemia da HIV e AIDS desnecessárias. Existiam os medicamentos, mas eles não chegaram às pessoas que precisaram dele”, denuncia.
Soberania nacional e acesso a medicamentos
Bermudez defende que o licenciamento compulsório traz também uma discussão sobre soberania nacional. “É a questão do acesso. Porque, na verdade, quando a gente aborda os medicamentos, há uma disputa entre política social e política comercial. Por um lado, visa-se ao lucro e, por outro, a população precisa ter acesso ao medicamento. É uma questão de equidade e de direitos humanos. Isso a indústria nunca olha, o que lhe interessa é a lucratividade, a rentabilidade. Tanto que as pesquisas direcionadas às doenças ditas negligenciadas, que atingem às populações vulneráveis, não interessam à indústria, porque não são rentáveis. É aí que vem o papel do setor público [que deve] se estruturar melhor e fazer”, afirma. De acordo com sua avaliação é necessário assegurar que produtos que sejam essenciais ao Brasil possam ter respostas internas de pesquisa e de produção. “Por mais contraditório que possa parecer, o que mais vem sendo sucateado pelo governo é o que está atendendo às demandas do Brasil”, avalia, referindo-se às instituições públicas de pesquisa e ensino.
Outra iniciativa que vai ao encontro à avaliação do pesquisador é a da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que emitiu um decreto sobre a liberação voluntária de patente para qualquer pesquisa realizada pela universidade que possa ser utilizada tendo em vista a relação com a pandemia.
Ainda em âmbito nacional, Bermudez destaca uma discussão no âmbito da Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Farmacêutica, relançada em setembro de 2019, sobre a elaboração de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) assegurando que o acesso a medicamentos seja considerado um direito fundamental. Mas para isso, diz, é preciso derrubar a Emenda Constitucional 95, que institui um teto de gastos para o governo federal. “Ela é incompatível com a incorporação de novos produtos e com o aumento da oferta de medicamentos pelo SUS”, resume.
Pedro Villardi acredita que as plataformas de pesquisa aberta trazem mais fruto para humanidade do que as de monopólio. “A colaboração é muito mais profícua do que a competição. Além disso, a gente tem que pensar na distância tecnológica que existe entre o Brasil e outros países desenvolvidos. A apropriação tecnológica favorece muito mais países que têm um patamar tecnológico mais elevado do que o Brasil. No nosso caso, a disponibilização de tecnologia para domínio público é muito mais benéfica para a ciência brasileira porque pode explorar tecnologias, tentar fazer engenharia reversa, inovação incremental, do que uma grande descoberta”, avalia. E completa: “O importante é preservar o domínio público. Se a gente for pensar em soberania, quanto menos patente e mais domínio público, mais soberano o país será no campo da ciência e tecnologia”.
Fonte: Fiocruz