10
maio

O que podemos fazer hoje para evitar um apartheid sanitário global

Devemos apoiar o “waiver” da OMC e garantir imunização para as mais de 7 bilhões de pessoas. É isso ou teremos: Norte vacinado x Sul sem vacinas.

DESDE O INÍCIO da pandemia de covid-19, o mundo tem sido confrontado com duas abordagens e alternativas: o acesso equitativo às tecnologias de saúde como um bem público global ou interesses comerciais em disputa. Esta última modalidade promove o que chamamos de apartheid da saúde, causado por uma guerra das vacinas.

A falta de tratamento eficaz para a doença e sua rápida transmissão mundial levaram ao desenvolvimento e à aprovação regulatória de vários tipos diferentes de vacinas, feitas com vírus inativados ou atenuados, partículas virais como proteínas, com vetores virais ou de ácido nucleico. Todas elas chegaram em tempo recorde no mercado, menos de um ano após a declaração da pandemia.

Apesar de a maioria das vacinas terem sido financiadas pelo poder público, sendo provenientes dos EUA, Europa, Reino Unido, China, Rússia, Índia e Cuba, a maioria delas estava sujeita aos chamados compromissos antecipados de mercado, o Advanced Market Commitments, um mecanismo que antecipa as compras mesmo antes da aprovação regulatória. A criação da Covax pela Organização Mundial da Saúde e a aliança GAVI foi saudada como um mecanismo que entregaria pelo menos 2 bilhões de doses de diversos imunizantes durante 2021, incluindo o fornecimento  para países pobres sem capacidade de pagamento para vacinar suas populações.

Nas Américas, cinco países foram incluídos nesta categoria (Haiti, Bolívia, Honduras, El Salvador e Nicarágua). No entanto, as entregas da Covax não estão nem próximas do suficiente. Mesmo tendo entregues mais de 40 milhões de doses a 118 países, o montante cobre menos de 5% ou 10% das populações. Honduras, um dos países mais mal preparados de nossa região no processo de vacinação, pode demorar 569 semanas, ou 11 anos, para vacinar toda a sua população. Isso é aceitável e justo quando outros países têm vacinas estocadas que não são necessárias?

Não é apenas Honduras que sofre de um apagão de vacinas. Estima-se que muitos países de renda média – aqueles com RNB per capita entre 1.035 e 12.616 dólares – e ainda os menos desenvolvidos levarão anos para alcançar altas coberturas com a vacina da covid-19, independentemente de qual vacina é fornecida. Esse será o futuro a menos que façamos um grande esforço para aumentar a produção global, fortalecer a cadeia de abastecimento, bem como os sistemas de saúde, para garantir o acesso em todo o mundo. Isso precisa ser enquadrado como uma obrigação moral e ética e garantir a ser adotada por todos: organizações da ONU, governos, setor público, setor privado, fabricantes, sociedade civil e possíveis e potenciais atores interessados.

Não estaremos seguros até que todos estejam seguros.

Mas é neste ponto que chegamos a uma encruzilhada: ou aumentamos a capacidade de produção de vacinas, incluindo a capacidade dos países em desenvolvimento, para atingir a população mundial de 7,9 bilhões, ou viveremos um apartheid sanitário, vacinando o Norte e atrasando a vacinação no Sul por muitos anos. Isso não vai parar a pandemia, porque vivemos em um mundo globalizado. Não estaremos seguros até que todos estejam seguros.

O nacionalismo exacerbado dos países do Norte reduziu a disponibilidade de vacinas para os países do Sul e minou o multilateralismo, afetando a cooperação e a solidariedade globais. Além de apoiarem as iniciativas multilaterais, eles estabeleceram acordos bilaterais com produtores de vacinas mediante compras antecipadas, muitas vezes muito acima de suas necessidades. Estudamos a “Operation Warp Speed” dos EUA, que reflete a parceria público-privada envolvendo as principais agências norte-americanas para acelerar o desenvolvimento, produção e distribuição de tecnologias (diagnóstico, tratamento ou vacinas), e identificamos que o nacionalismo atende aos interesses econômicos ao invés da saúde global. Essa operação é baseada no projeto Bioshield e no Biomedical Advanced Research and Development Authority, o Barda, da Lei de Preparação de Pandemia.

A propriedade intelectual é uma barreira ao acesso e que está retardando o aumento da disponibilidade de vacinas.

A propriedade intelectual é uma barreira ao acesso e que está retardando o aumento da disponibilidade de vacinas. De acordo com um artigo recente de Paul Adler no Washington Post, vacinas como as do coronavírus requerem cerca de 200 componentes individuais, a maioria deles protegidos por patentes de diferentes empresas. O licenciamento voluntário nunca será suficiente ou confiável e certamente limitará o escopo geográfico, como vimos ocorrer no passado com diferentes tecnologias. Até mesmo a recente proposta da OMS, estabelecendo um hub de transferência de tecnologia de vacina de mRNA covid-19, indicando a transferência voluntária de um pacote de tecnologia abrangente e treinamento para os fabricantes que atendam a um edital, levará tempo e muitas pessoas, países e, especialmente, populações vulneráveis serão deixadas para trás. Mesmo agora, estamos acompanhando uma carta de adesão para a inclusão de migrantes, refugiados, deslocados para acesso à vacina na Europa e no Reino Unido.

Mas o que pode ser feito agora? A suspensão temporária, ou “waiver”, de certas disposições do Acordo Trips para a prevenção, contenção e tratamento da covid-19 é considerada por muitos de nós como a melhor forma de acelerar a expansão da produção para além das grandes empresas farmacêuticas, ao mesmo tempo que abre caminho para aumentar o licenciamento voluntário. O “waiver” foi proposto no Conselho de Trips da OMC em outubro de 2020 pela Índia e África do Sul e é atualmente apoiado por dois terços dos membros da OMC. Outras iniciativas vêm sendo discutidas, como o Accelerator e o Covid-19 Technology Access Pool, o ACT, ambas na OMS.

Acadêmicos, ex-chefes de estado e ganhadores do Prêmio Nobel, políticos, parlamentares de diversos países estão apoiando o “waiver” em discussão na OMC, mas enfrentam forte oposição da indústria farmacêutica, que vem fazendo lobby na mobilização contra a proposta com campanhas publicitárias e artigos de opinião em jornais. Opondo-se frontalmente à proposta dos tradicionais parceiros e membros dos BRICS, o Brasil emitiu apoio à “terceira via” defendida pela diretora-geral, que consiste em incentivar fortemente a articulação de mecanismos voluntários de cooperação e transferência de tecnologia. Existem movimentos pressionando o governo brasileiro a mudar sua oposição na OMC, mas é altamente improvável esse movimento tendo em vista das posições políticas ultraliberais do atual governo.

O Conselho Econômico e Social da ONU acaba de divulgar uma declaração do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais para reforçar que “todos os mecanismos, incluindo o licenciamento voluntário, ‘pools’ de tecnologia, uso de flexibilidades do Acordo Trips e a suspensão temporária de certas disposições de propriedade intelectual ou exclusividades de mercado devem ser exploradas com cuidado e utilizados”. Também recomenda que os estados apoiem as propostas dessa suspensão temporária, inclusive utilizando seus direitos de voto na OMC.

No Brasil, além dos acordos de transferência de tecnologia, diversos projetos de lei estão sendo propostos e discutidos no Congresso que tratam do licenciamento compulsório automático para tecnologias relacionadas à pandemia. Eles estão tendo um apoio muito forte, mas também uma oposição na mesma medida, principalmente da indústria farmacêutica e do atual governo.

Um grande passo foi dado com a aprovação, no Senado, no último dia 29 de abril, do parecer do relator Nelsinho Trad ao Projeto de Lei 12/2021, do senador Paulo Paim. O substitutivo, aprovado por 55 votos contra 19, altera a Lei no. 9.279, de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, para conceder licença compulsória para exploração de patentes de invenção ou de modelos de utilidade necessários ao enfrentamento de emergências de saúde pública”. Portanto, vai na mesma direção que os PLs tramitando na Câmara e nos aproxima do “waiver” em discussão na OMC, ao mesmo tempo que propõe que as licenças compulsórias sejam concedidas a instituições públicas e privadas ou organizações da sociedade civil com efetivo interesse e capacidade econômica para realizar a exploração eficiente da patente ou do pedido de patente, vedado o sublicenciamento.

O PL estabelece, ainda, que o Executivo deve publicar lista de patentes ou pedidos de patentes cujas licenças compulsórias atendem às suas necessidades em até 30 dias, sujeita ainda a revisões periódicas. Consideramos essa aprovação no Senado como uma grande vitória e esperamos a mesma sensibilidade e compromisso na discussão na Câmara em defesa do SUS, da saúde e da vida.

Todas essas iniciativas devem ser enquadradas em uma iniciativa de cooperação multilateral sólida para não se perderem no meio de interesses. A discussão sobre como lidar com as incoerências entre direitos individuais, prioridades de saúde pública, leis e regulamentos é permanente. Passamos mais de um ano inesperado com restrições severas, necessárias, mas dolorosas. Precisamos agora entregar lições aprendidas concretas e úteis sobre o acesso a vacinas como um bem público: será o nosso legado para as gerações futuras.

*Jorge Bermudez is senior sesearcher at the National School of Public Health, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Ministry of Health, Brazil. He was a member of the UN Secretary General’s High-Level Panel on Access to Medicines and served as executive director of UNITAID in Geneva, Switzerland, from 2007 to 2011.

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