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Para Propaganda Falsa tem Remédio

Artigo discute a emergência em se aprofundar um debate na sociedade sobre a regulamentação da propaganda de medicamentos. A pandemia e a disseminação de publicidade em torno de remédios para o tratamento precoce de Covid-19 ampliaram a necessidade de se discutir os impactos e perigos à saúde que a publicidade de remédios sem eficácia comprada podem trazer. Leia abaixo:

Debora Raymundo Melecchi [1]
Maria Eugênia Carvalhaes Cury[2]
Maria Eufrásia de Oliveira Lima[3]
Ronald Ferreira dos Santos[4]
Alice Portugal[5]

A recente manifestação de membros da CPI da Covid-19, sobre um possível  pedido de indiciamento do Presidente da República por curandeirismo e charlatanismo, em decorrência de sua reiterada defesa do uso de medicamentos com comprovada ineficácia no tratamento da COVID-19, reacende o debate sobre a propaganda de medicamentos no Brasil. Além disso, o depoimento de Jailson Batista,[6]  diretor da farmacêutica Vitamedic, uma das principais produtoras de ivermectina no Brasil, quando admitiu que a empresa patrocinou publicidade feita pela associação “Médicos pela vida”, no valor de R$ 717 mil reais, do tratamento precoce contra COVID-19, conhecido como kit covid e que incluía a ivermectina, sem efetividade contra a doença, fortalece a necessidade de ampliação deste debate junto à sociedade.

E em plena crise sanitária, social e econômica, nos vemos diante de um projeto político nacional que atua, com intencionalidade, contra as vidas. O incentivo ao uso incorreto de medicamentos para a COVID19, se traduziu em ampliação de produção de cloroquina, nota orientadora de seu uso por parte do Ministério da Saúde,[7] propaganda por parte do Presidente da República, além da ausência de campanhas esclarecedoras sobre os riscos da automedicação.

Embora a propaganda de medicamentos no Brasil seja lícita, é fundamental registrar  que trata-se de uma atividade que está sujeita a regras específicas, conforme previsto na Constituição Federal em seu art. 220 – parágrafo 4º. Afinal, os medicamentos não são bens de consumo comuns, e sim, bens de saúde, fundamentais para o tratamento de doenças e prevenção de agravos, como as vacinas. O Estado Brasileiro, ao regular a propaganda de medicamentos, exerce a sua função de mediador de assimetrias de informação e de interesses entre o produtor dos mesmos e os consumidores.  (BRASIL,1988)

O direito à liberdade, e livre iniciativa da indústria de medicamentos em disseminar informações sobre os seus produtos, não pode estar acima da garantia à população do seu direito à saúde, expresso na redução de riscos no uso inadequado de medicamentos.

A obra “Vendendo Saúde: A História da Propaganda de Medicamentos no Brasil” de Eduardo Bueno e Paula Taitelbaum, editada pela Anvisa em 2008, traz uma importante análise sobre o direito à saúde expresso no contexto de Estado social em que se enquadra a Constituição de 1988, onde  é possível perceber que a saúde está vinculada a vários outros temas e, por isto, transcende ao expresso na seção da saúde da Constituição (no artigo 196). Assim, para interpretar a proteção à saúde é necessário atentar para todo o contexto constitucional. Essa análise nos convida a refletir que o direito à “dignidade da pessoa humana”, expresso no artigo primeiro da CF, tem primazia e orienta os demais valores sociais do trabalho, da livre iniciativa, dos direitos individuais e da ordem econômica.

Por isso, o que temos acompanhado em relação à propaganda de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid-19, atenta contra a saúde e à dignidade das pessoas, e caracteriza-se como propaganda abusiva, na medida em que explora o medo em relação a pandemia e induz as pessoas a se comportarem de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde. Também trata-se de propaganda enganosa, quando emite informação falsa e induz o consumidor ao erro de se achar protegido do vírus e abandonar os cuidados de proteção, expondo-se à infecção.

A constatação dos riscos relacionados ao uso inadequado de medicamentos pode ser observada pelos dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) que demonstram que os medicamentos ocupam o primeiro lugar entre os agentes causadores de intoxicações e o segundo nos registros de morte por intoxicação. No ano de 2016 foram notificados 32311 casos de intoxicação por medicamentos, correspondendo a 33,17% do total de todos os registros)[8].

A luta pela promoção do Uso Racional de Medicamentos passa, também, pela atenção às práticas relacionadas à propaganda desses produtos. A Resolução RDC/ ANVISA n°96/2008, define propaganda como o conjunto de técnicas utilizadas com objetivo de divulgar conhecimentos e/ou promover adesão a princípios, idéias ou teorias, visando exercer influência sobre o público através de ações que objetivem promover determinado medicamento com fins comerciais, exercendo impacto nas práticas terapêuticas e no comportamento das pessoas em relação ao uso.(BRASIL,2008)

Segundo a página do CEE-Fiocruz, em matéria publicada em agosto de 2017, a “Exposição a medicamentos sem eficácia comprovada, risco de submissão a tratamentos inadequados, suscetibilidade a efeitos colaterais e ao agravamento de quadros clínicos são possibilidades criadas pela preponderância do viés publicitário e mercadológico no cuidado com a saúde”[9].

A preocupação com os malefícios da propaganda de medicamentos no Brasil tem sido uma pauta central dos farmacêuticos e farmacêuticas por meio da atuação da Federação Nacional dos Farmacêuticos – Fenafar.

Em 2005, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Federação Nacional de Farmacêuticos (Fenafar) e a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) fizeram uma parceria com o objetivo de reduzir os efeitos do mau uso de medicamentos. Assim, iniciaram uma ação conjunta para coibir a propaganda de medicamentos, que resultou na realização de quatro seminários regionais  e o fechamento com o  Seminário Nacional Sobre Propaganda e Uso Racional de Medicamentos, que aprofundou o debate sobre medidas para proibir a propaganda de medicamentos nos meios de comunicação e também para regular a divulgação de folhetos promocionais além da formulação de um plano de ação nacional para a inserção do Uso Racional de Medicamentos nas práticas dos profissionais prescritores e dispensadores, e que ganhou materialidade em uma série de processos no setor público e privado que envolvem o uso de medicamentos.

Nestes processos, os papéis dos profissionais de saúde, gestores, prestadores de serviço e meios de comunicação são  estratégicos para a promoção do uso racional de medicamentos ao cumprir o seu fazer, no atendimento às necessidades e bem estar das pessoas.

O SUS estabeleceu a Saúde como direito, e com o advento da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), em 2004, o medicamento passou a ser  um insumo garantidor desse direito. Assim,   mais do que responsabilizar criminalmente aqueles que buscam lucrar ou beneficiar-se politicamente de forma vil, inescrupulosa e negacionista da demanda por um “remédio” para a COVID19, a sociedade brasileira precisa reforçar os mecanismos que a protegem da tirania na política, e da ganância do mercado, que desconsideram e desprezam  as necessidades e bem estar das pessoas, a ciência e a vida, que passa pelo fortalecimento do SUS e a submissão dos setores complementares e suplementares, na sua regulação e planejamento, incluindo a farmácia, que a partir de 2014, passou a condição de uma unidade de prestação de serviços destinada a prestar assistência farmacêutica, assistência à saúde e orientação sanitária individual e coletiva (Brasil,2014)).

Formulações acerca do uso racional de medicamentos estão sendo oferecidas à sociedade brasileira quase ao mesmo tempo das formulações das diretrizes assistenciais e gerenciais de como garantir o funcionamento do SUS, público, universal e integral. É necessário reunir forças técnicas e políticas para que as diferentes atividades econômicas da saúde atendam de fato ao interesse público e não a manutenção ou ampliação de poderes e lucros.

E definitivamente não é apenas discurso, mas inúmeras iniciativas, se já implementadas, poderiam ter evitado as nefastas consequências ao povo brasileiro. A CPI do senado têm evidenciado esta questão que se traduz na necessidade de concretizar ações, tais como: o desenvolvimento de campanhas de conscientização da população e ação conjunta dos gestores públicos para utilização dos seus órgãos de comunicação para a promoção do uso racional de medicamentos; estímulo à aproximação das categorias de prescritores e dispensadores; conduta médica, farmacêutica e da equipe de saúde  baseada nos princípios da ética, da saúde e em evidências; ação do parlamento com  projetos de lei que fortaleçam a Assistência Farmacêutica como direito; retomada de debates amplos sobre a propaganda de medicamentos, com a participação do controle social do SUS.

Fundamental seguirmos somando forças e amplitude para que se tenha garantida o direito dos cidadãos à assistência farmacêutica e o respeito ao uso racional de medicamentos como instrumento essencial no contrapondo a má publicidade de medicamentos e remédios e na defesa das vidas, da ciência e da democracia.

Autores 

[1] Farmacêutica, Presidenta do Sindicato dos Farmacêuticos do Rio Grando do Sul, Diretora da Federação Nacional dos Farmacêuticos e Conselheira Nacional de Saúde

[2] Farmacêutica, Mestre em Educação pela Unicamp

[3] Tecnóloga de Administração em Recursos Humanos, Assessora Sindical na Federação Nacional dos Farmacêuticos

[4] Farmacêutico, Mestre em Saúde Pública pela UFSC, Presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos

[5] Farmacêutica, Deputada Federal PCdoB-BA

Referências

Brasil, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Brasília, 1988. 11.ago.2021Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao >.

Brasil, Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, RESOLUÇÃO-RDC Nº 96, DE 17 DE DEZEMBRO DE 2008 – Dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos , Brasília,2008,. 11.ago.2021 . Disponível:<https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2008/rdc0096_17_12_2008.html>

Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Lei. N. 13.021 de 08 de agosto de 2014.  Dispõe sobre o exercício e a fiscalização das atividades farmacêuticas. Brasília, 2014. 11.ago.2021. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13021.htm>

Bueno, Eduardo e Taitelbaum,  Paula, –  Vendendo Saúde: A História da Propaganda de Medicamentos no Brasil, 2008,Ed. Anvisa, Brasíla – 11.ago.2021 Disponível: <https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/educacao-e-pesquisa/publicacoes-sobre-educacao-e-pesquisa/vendendo-saude-a-historia-da-propaganda-de-medicamentos-no-brasil.pdf/view.>

[6] À CPI, diretor de farmacêutica diz que não vendeu ivermectina ao governo – Jailson Batista confirmou que Vitamedic pagou R $717 mil em campanha que apoiava ‘tratamento precoce’, com medicamentos sem eficácia comprovada . Disponível em : https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/08/11/cpi-da-covid-ao-vivo-diretor-da-vitamedic-jailton-batista-depoe-aos-senadores

[7] Orientações do Ministério da Saúde para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19 – Retirado do site em março de 2021.

[9] Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz -CEE/Fiocruz. Perigosa e alienante, a publicação de medicamentos,na análise de especialistas. 22.ago.2017. Disponível em https://cee.fiocruz.br/?q=node/638>

Fote: Fenafar
Publicado em 16/08/2021

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