Patentes: o Judiciário enfrentará a Big Pharma?
Artigo de Luciana de Melo e Eli Iola Gurgel
Há mais de duas décadas, famílias brasileiras têm recorrido à Justiça em busca de acesso a cirurgias, leitos e outras prestações em saúde, como os medicamentos. Foi exatamente a disputa judicial por antirretrovirais que marcou, no Brasil, o início de um fenômeno que hoje é intensamente debatido entre gestores, juristas, pesquisadores e cidadãos: a judicialização da saúde.
Essa transferência de parte das decisões em saúde dos poderes políticos tradicionais — Legislativo e Executivo — para o Judiciário pressupõe a correção de falhas políticas que prejudicam a garantia do direito à saúde. Corrigindo essas falhas, o Judiciário atuaria como uma força auxiliar para a efetivação do direito à saúde, inscrito na Constituição Federal do Brasil.
Contudo, entendemos que a forma predominante de participação judicial na saúde consolidada nos últimos 25 anos — por meio, sobretudo, do julgamento de ações individuais — não alcança as decisões políticas que precisam ser corrigidas.
Tomemos o exemplo daqueles que são o principal objeto das ações judiciais em saúde: os medicamentos. Em 2019, o Ministério da Saúde gastou R$ 1,3 bilhão para o atendimento a demandas judiciais por medicamentos. Desse montante, 90% foram gastos com medicamentos para doenças raras, que são aquelas que afetam até 1,3 pessoas em cada 2.000 indivíduos. Por que as tecnologias para essas doenças — que, como o próprio nome já diz, são raras — representam uma parcela tão grande do gasto com a judicialização? De certo, não é pelo volume de ações.
A demora para a incorporação das novas tecnologias seria, na visão da Indústria Farmacêutica Multinacional, a grande falha política que o juiz deveria corrigir ao decidir, em um caso individual, pela obrigação de fornecimento do medicamento. Contudo, avaliar a incorporação de um medicamento não é uma tarefa fácil, sobretudo em um contexto de falta de evidência científica robusta devida ao baixo número de pacientes raros avaliados em estudos clínicos, essenciais para atestar a eficácia de um tratamento.
A isso, soma-se o difícil contexto financeiro vivenciado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e por todos os sistemas de saúde do mundo, que têm sofrido a pressão do aumento de gastos pela incorporação de tecnologias cada vez mais caras. No Brasil, de 2010 a 2019, o gasto com assistência farmacêutica do Ministério da Saúde cresceu 75%, enquanto o orçamento geral da pasta cresceu 40%.
É importante lembrarmos, ainda, da decisão política tomada em 2016, pela aprovação do teto de gastos, por meio da Emenda Constitucional 95/2016, responsável pela retirada, desde então, de mais de R$22 bilhões do SUS, segundo o Conselho Nacional de Saúde.
Frente a esse cenário, a discussão sobre a incorporação de um medicamento para uma doença rara, como o famoso Zolgensma — conhecido como o medicamento mais caro do mundo, lançado a um preço de dois milhões de dólares — se torna acalorada e complexa.
Se, por um lado, as necessidades em saúde são tidas como infinitas, por outro, com o alto preço das tecnologias e a redução do orçamento para a saúde, as possibilidades concretas que o SUS tem de atendê-las estão cada vez mais reduzidas. Ao decidir pelo fornecimento de um medicamento como o Zolgensma, entendemos que o Judiciário não corrige falhas que determinam essas possibilidades. Na verdade, há apenas a decisão sobre qual necessidade em saúde deve ser priorizada. Em um contexto de recursos finitos, isso significa “despir um santo para cobrir outro”.
Discute-se intensamente se o SUS deve ou não incorporar medicamentos de alto custo, mas outra pergunta urgente e crucial não parece, ainda, inquietar nossa sociedade: por que um medicamento pode custar tão caro?
Uma das respostas a essa pergunta passa pela propriedade intelectual. Se uma empresa tem uma patente sobre um medicamento, ela detém o monopólio sobre ele por, pelo menos, 20 anos, segundo rege o acordo internacional sobre o tema: o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio — Acordo TRIPS, na sigla em inglês. Ter o monopólio significa ter a prerrogativa de decidir: sobre o preço, sobre a produção de genéricos, entre outros.
E, no Brasil, decisões políticas permitiram que fossem incorporados dispositivos que prolongam o monopólio patentário, injustificados pela legislação internacional, em nossa Lei de Patentes. Quanto mais longo o monopólio, mais demorada é a entrada de genéricos mais baratos no mercado. As patentes pipeline e a extensão automática de patentes são dois desses mecanismos cuja legitimidade vem sendo questionada no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIn) números 4.234/DF e 5.529/DF, respectivamente.
Em um artigo recentemente publicado, apontamos que, em Minas Gerais, entre 2011 e 2018, dos mais de R$ 93 milhões gastos com a judicialização do ranibizumabe (Lucentis) e do bevacizumabe (Avastin) — dois medicamentos que figuram na lista dos mais judicializados no estado e no Brasil —, mais de R$ 28 milhões poderiam ser economizados se não houvesse o monopólio patentário dos medicamentos, possibilitado por esses mecanismos.
Por isso mesmo, celebramos a histórica e importante decisão do Supremo Tribunal Federal da última quinta-feira, 6 de maio, ao declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 40 da Lei de Propriedade Industrial brasileira, no julgamento da ADIn nº 5.529/DF. O dispositivo permitia a extensão automática de patentes para além dos 20 anos definidos pelo Acordo TRIPS. A decisão afetaria imediatamente mais de 3 mil patentes relativas à saúde, alterando, significativamente, o cenário de possibilidades para a garantia do acesso a tecnologias essenciais pelo Estado brasileiro.
Contudo, o debate no STF ainda não foi concluído, tendo sido deixada para a próxima quarta-feira, 12 de maio, uma decisão essencial: a modulação dos efeitos da deliberação. Enquanto o relator, ministro Dias Toffoli, entende que as patentes relativas à saúde que se beneficiam do dispositivo, equivocadamente adotado pelo legislador brasileiro, devem cair, outros ministros, receosos do impacto econômico dessa decisão, defendem que sejam atingidas apenas as patentes concedidas a partir de agora ou as patentes relativas às tecnologias diretamente relacionadas ao enfrentamento da pandemia.
E aqui, como na parábola, o rei fica nu. Pois, se há um agente que não deixou de lucrar fortemente na maior crise sanitária do século, é a Indústria Farmacêutica Multinacional, detentora da grande maioria das patentes em saúde no planeta. Enquanto isso, já perdemos mais de 420 mil vidas para a covid-19 e mais recursos devem ser investidos para uma resposta adequada à pandemia.
Garantir ao SUS a possibilidade, pelo menos, de comprar medicamentos mais baratos significa aumentar as chances de atender mais necessidades em saúde — cobrir mais santos! Ao invalidar 3 mil patentes relativas à saúde, prolongadas por um dispositivo inconstitucional, o STF corrigiria uma falha política que determina a possibilidade de o Estado garantir o direito à saúde.
Decisões judiciais individuais sobre o fornecimento de um medicamento enfrentam os sintomas — e não as causas — dos problemas que impedem a consolidação do SUS nos moldes constitucionais. Esses problemas são estruturais. Na próxima quarta-feira, o Judiciário poderá corrigir um desses problemas e mostrar-se, de fato, a força auxiliar que se propõe a ser, há mais de 25 anos, para a efetivação do direito constitucional à saúde no Brasil.
Esperançosas, acompanharemos.
Artigo publicado originalmente no Outras Palavras, em 11 de maio de 2021.